A bactéria intestinal H. pylori (Foto: Y. Tsutsumi/CC)
EM CIÊNCIA, ALGUMAS descobertas são tão indesejadas que precisam ser feitas duas vezes para chamarem a atenção. A constatação de que os antibióticos fazem animais ganharem peso é uma delas. Pecuaristas se aproveitam deste fenômeno há décadas para engordar seus rebanhos, mas só agora cientistas investiram esforço em mostrar que o mesmo ocorre com seres humanos.
Em um estudo no periódico “International Journal of Obesity”, Martin Blaser, professor de microbiologia da Universidade de Nova York, compilou dados de vários jovens nascidos na década de 1990, mostrando uma correlação forte entre o uso de antibióticos nos primeiros meses de vida e a obesidade infantil. Outro trabalho recente do médico, na revista “Nature”, mostrou as possíveis causas do fenômeno: em um experimento, esses medicamentos alteraram a comunidade bacteriana no intestino de camundongos, e aqueles micróbios que prevaleceram causaram mudanças no metabolismo.
Descobrir novos efeitos colaterais em antibióticos, claro, é uma coisa a se lamentar. Essas são drogas que salvam vidas de pacientes com tuberculose e outras infecções graves, e sanitaristas já têm de lidar com o grave problema das bactérias que se tornam resistentes a esses medicamentos. Durante anos, porém, os efeitos crônicos do uso dos antibióticos foram subestimados, e a obesidade é um deles. Martin Blaser, que já era conhecido da comunidade científica por descobrir o papel da bactéria H. Pylori no câncer gástrico, foi o principal responsável por alertar para o aumento da gravidade do problema. Em entrevista ao Teoria de Tudo, ele fala sobre a descoberta:
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TEORIA DE TUDO – O sr. descobriu que os antibióticos mudam a fauna bacteriana intestinal de forma que ela nos põe sob maior risco de nos tornarmos obesos. Por que essa mudança ocorre?
MARTIN BLASER – Fazendeiros já sabem há 60 anos que quando se administra uma dose pequena de antibióticos a um animal, você promove seu crescimento. Isso vale para frangos, gado, porcos, ovelhas, perus e tudo o que existe no meio. Mas saber por que isso ocorre ainda é uma questão em aberto. Esse efeito é verificado com virtualmente qualquer tipo de antibiótico, mas não com antifúngicos e e antivirais. Portanto, sabemos que é realmente algo relacionado a bactérias.
O que nós documentamos agora é que existe uma mudança na composição da população de bactérias e uma mudança no metabolismo delas, de forma que passam a produzir mais ácidos graxos de cadeia curta. [Ácidos graxos são fonte de energia para o organismo e normalmente são armazenados na forma de gordura no corpo.]
Eu não sei por que isso ocorre; apenas observamos ocorrer. Mas a partir disso podemos dizer que os ácidos graxos de cadeia curta saem do intestino para a corrente sanguínea e de lá entram no fígado pela veia porta hepática.
No fígado, esse fornecimento adicional de ácidos graxos resulta na ativação de muitos genes relacionados ao metabolismo, especialmente aqueles relacionados ao armazenamento de energia para formar gordura. Então, descobrimos parte do mecanismo envolvido. Agora, por que essa mudança de composição ocorre? Nós achamos que é por causa dos antibióticos, mas não sabemos ainda por que eles estão selecionado uma população que é mais eficiente em extrair energia de sua comida.
Isso não é uma relação evolutiva direta? Não é uma vantagem para qualquer bactéria conseguir processar alimento mais rápido quando está ameaçada?
Essa é uma boa hipótese, mas é tão boa quanto qualquer outra que já escutamos. Um problema que ocorre é que muitas diferentes classes de antibióticos têm esse efeito. No intestino, as bactérias estão competindo umas contra outras. Nós não verificamos uma redução no número total de bactérias, e sim uma mudança na composição da população. Isso ocorreu sob cada um dos quatro regimes diferentes de medicamentos que usamos, com espectro muito diferente de atividade antibacteriana. Mas não sabemos o mecanismo. Ainda não solucionamos isso.
Qual a relação direta disso com a epidemia de obesidade?
O estudo que publicamos no “International Journal of Obesity” é um trabalho sobre epidemiologia humana. Estudamos na Inglaterra uma coorte de mais de 10 mil crianças que haviam sido inscritas desde o nascimento, nos anos 1990, e as acompanhamos por vários anos para ver os resultados. Nós mostramos que o uso de antibiótico no início da vida era um fator de risco para que elas desenvolvessem sobrepeso. Mostramos uma associação direta. O resultado de nosso estudo com camundongos se encaixa no do nosso estudo com humanos. Um foi uma observação e o outro foi um experimento, mas ambos indicam que exposição a antibióticos no início da vida muda o desenvolvimento do hospedeiro.
Vocês também mostraram que houve mudanças na estrutura óssea dos indivíduos, causando um crescimento extra. Isso tem algo a ver com a obesidade?
Isso é consistente com o fato de que os antibióticos estão mudando o microbioma [o conjunto de micróbios] de modo que este passa a enviar sinais diferentes para o organismo que o hospeda. Essa alteração desencadeia uma cascata de mudanças durante o desenvolvimento.
Essa mudança nos ossos, em princípio, não é um problema. É uma observação. Especulamos que isso seja parte da razão pela qual as pessoas estão ficando mais altas. Nós já confirmamos essa aceleração do desenvolvimento inicial de ossos em alguns trabalhos que apresentamos em congressos acadêmicos, mas ainda estamos preparando uma publicação.
Então, até agora nós já temos evidência de que os antibióticos têm efeitos no fígado, nos ossos e na gordura. Temos também estudos mostrando que a população de linfócitos-T [células do sistema imune] mudou no osso ílio. Isso significa que antibióticos estão tendo grande efeito sobre as populações de células e sobre a ativação de genes no início da vida.
Já se especulou que os problemas causados por antibióticos poderiam ser tratados com os “probióticos”, microorganismos que são benéficos para o corpo. O sr. acha que suas descobertas abrem a porta para isso?
Nós achamos que sim. O único problema é que não sabemos o que são esses probióticos. Eles ainda não foram descobertos. Acreditamos que, no futuro, vamos conseguir prevenir o desencadeamento da obesidade se conseguirmos repor alguns dos organismos que foram perdidos. Mas ainda não sabemos quais são os organismos-chave para fazer isso. Uma vez que saibamos, devemos ser capazes de desenvolver estratégias para repô-los. Quando uma criança tomar um antibiótico, talvez será possível administrar o probiótico junto. O que fizemos até agora, porém, é apenas base para pesquisas futuras.
Seu trabalho levanta algum tipo de preocupação adicional com o uso de antibióticos em pecuária? Os fazendeiros sempre argumentaram que as doses são muito baixas para serem repassadas às pessoas via consumo de carne.
Essa é uma boa questão para a qual também não tenho resposta. Nos Estados Unidos, isso é regulamentado pelo governo, e pecuaristas são obrigados a manter os animais por um período de “lavagem” antes do consumo. Depois de parar de administrar os antibióticos, eles têm de esperar algum tempo antes de poderem vender o animal. Assim, seu organismo tem tempo de expelir as substâncias.
Não sei dizer se os fazendeiros estão efetivamente respeitando essa regra, mas algumas medidas dos resíduos de antibióticos em fluidos [de animais] tem sido feitas como prevenção. É possível que as pessoas estejam recebendo doses extremamente baixas de antibiótico, mas não temos uma resposta para isso.
Vocês fizeram uma parceria com o instituto do biólogo Craig Venter, um dos pioneiros do sequenciamento do genoma humano, para realizar seus últimos estudos. No que ele contribuiu?
Nós fizemos com eles um levantamento usando uma técnica para ler os genes ativados na forma que chamamos de “RNA ribossômico 16S”. É uma técnica que agora está se tornando comum na análise de comunidades microbianas tanto na água do mar quanto no solo, em camundongos ou em pessoas. Não importa se elas são espécies no intestino, na pele, podemos usar a mesma técnica para fazer um censo da população presente.
Qual a principal mensagem dos seus estudos mais recentes aos médicos?
A principal coisa que quero comunicar é que ambos os estudos fornecem evidência de que os antibióticos alteram o desenvolvimento nos estágios iniciais da vida. É um consenso que antibióticos estão sendo usados em excesso hoje. Existe uma crença, porém, de que o pior que pode acontecer são erupções de pele, o intestino solto por alguns dias, ou um pouco de alergia. O senso comum é de que não há consequências de longo prazo no uso de antibióticos, mas nós estamos mostrando que elas podem existir, sim.
No futuro, pais e médicos terão de avaliar com mais cuidado se o uso de antibiótico é realmente necessário. Em muitos e muitos casos ele realmente vai ser necessário, porque a criança pode estar muito doente. Mas em outros muitos casos ele não vai ser necessário. Durante anos, a comunidade médica assumiu que essas drogas potentes não teriam nenhum custo de longo prazo, mas nós estamos sugerindo que elas podem ter.
Em que o sr. está trabalhando agora?
Estive em Manaus algumas semanas atrás, trabalhando em um estudo com pessoas na Amazônia para analisar seus microbiomas. Nós começamos em tribos bastante isoladas e terminamos em uma cidade bastante moderna, de forma que pudemos ver um contínuo entre as pessoas. Apreciei bastante minha estadia no Brasil. Ainda estamos coletando amostras para publicar os dados mais tarde.