O imunologista Michel Nussenzweig (Foto: Divulgação)
O IMUNOLOGISTA Michel Nussenzweig, 57, professor da Universidade Rockefeller, de Nova York, foi o personagem central da última boa notícia na pesquisa de tratamentos contra o HIV. Trabalhando com anticorpos —as proteínas de ataque do sistema imune— o cientista descobriu moléculas capazes de neutralizar uma vasta gama de variedades do vírus da Aids e obteve sucesso ao tratar cobaias num experimento.
Para quem achou o sobrenome do pesquisador familiar, é porque sua família é pródiga em produzir cientistas talentosos. Nascido em São Paulo, Michel é filho de Victor e Ruth Nussenzweig, que desenvolveram uma vacina contra malária. A família mudou-se para os Estados Unidos quando ele e o irmão André (hoje especialista em genética do câncer) ainda eram crianças. No Brasil ficaram os físicos Moysés e Paulo e a matemática Helena (tio e primos), todos pesquisadores de sucesso em suas áreas. E mesmo numa família com tantas estrelas da ciência, Michel começa a ocupar lugar de destaque. Após trilhar toda a carreira em instituições de ponta nos EUA, tornou-se integrante da Academia Nacional de Ciências do país em 2011.
Tantos anos fora do Brasil, porém, deixaram o cientista desconfortável para conversar sobre seu trabalho em português, apesar de falar bem a língua. Na manhã da última terça-feira, quando caminhava de casa para o trabalho, atravessando o Central Park, Michel concedeu à Folha uma entrevista por telefone, em inglês, da qual a tradução integral segue abaixo. Às vésperas de preparar um ensaio clínico com pacientes humanos, ele explica por que está otimista com o progresso de sua pesquisa:
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FOLHA – Como surgiu a ideia de usar anticorpos monoclonais para combater o HIV?
MICHEL NUSSENZWEIG – A ideia de que anticorpos podem ser usados passivamente em terapias já está aí há cem anos, e ganhou o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1908. Esse tipo de tratamento, a terapia de soro sanguíneo, foi largamente usado no Brasil para tratar picadas de cobras e aranhas.
Durante muitos anos, porém, fazer isso não era prático porque era preciso usar soro de cavalos ou de outros animais. Não era possível usar humanos para produzir os anticorpos.
Mais recentemente, com o advento da clonagem, tornou-se possível obter anticorpos humanos, e a eficácia da terapia começou a ser testada.
A vantagem dessa abordagem é que os anticorpos são um produto natural. A terapia consiste em transferir um produto de um ser humano para outro ser humano. As drogas, em contraposição, não são naturais e podem trazer efeitos colaterais e outros problemas. A expectativa é que os anticorpos não teriam efeitos colaterais e seriam mais duradouros. A ideia de usa-los para combater o HIV surgiu desse campo de pesquisa.
Até pouco tempo atrás, não era possível estudar a Aids em animais, pois o HIV é um vírus exclusivamente humano. Os camundongos geneticamente modificados que o sr. usou são um bom modelo para estudar a doença?
Sim. Eles adquirem uma doença muito similar, que provoca a perda das células TCD4+, atacadas pelo vírus. Esses animais “humanizados” exibem um sistema imune humano adaptativo. Isso significa que eles possuem linfócitos humanos e diversos outros tipos de células humanas derivadas da medula óssea.
Por que vocês decidiram fazer isso em camundongos, e não em macacos, que são geneticamente mais parecidos com os humanos?
Porque o sistema imune dos macacos ataca os anticorpos humanos, da mesma forma que o sistema imune humano ataca os anticorpos de cavalos.
Para produzir os camundongos “humanizados”, iniciamos com um camundongo mutante que possui um sistema imune “vazio”. Quando o roedor ainda é recém nascido, são injetadas células-tronco humanas, e ele tolera o implante.
Em seu estudo, o sr. defende que o uso de anticorpos pode ser uma alternativa às drogas antirretrovirais. Hoje, porém, já existem regimes de tratamento para contornar a resistência do vírus. Quando seria o caso de usar os anticorpos monoclonais, que são uma terapia sofisticada?
Nós estamos tentando agora montar um teste clínico para fazer isso. [A terapia de anticorpos] é uma coisa cara, então essa é uma questão que ainda estamos tentando responder. Os eventuais candidatos ao teste serão os pacientes que não toleram bem as drogas, aqueles nos quais a droga está falhando ou aqueles que queiram passar por um tratamento que requeira tomar uma dose a cada poucos meses, em vez de tomar algo todo dia.
Por que os anticorpos monoclonais foram melhores e mais eficazes que as drogas antirretrovirais no experimento?
Bom, em certo sentido, eles não foram melhores. Eles foram similares, porque ambos funcionaram. Ambos nocautearam a carga viral. A diferença é que um deles é duradouro, e o outro não. Quando a terapia antirretroviral foi interrompida, o vírus voltou num período de tempo muito curto, e com os anticorpos monoclonais ele ficou abatido por um longo tempo.
Isso aconteceu porque a meia-vida [taxa de deterioração] do anticorpo nos camundongos é bastante longa. A meia-vida das drogas antirretrovirais é medida em horas, enquanto a meia-vida dos anticorpos é medida em dias.
Em humanos, a meia-vida de anticorpos é ainda mais longa que nos camundongos. O controle dos vírus no camundongo foi mantido por 60 dias sem terapia. Em humanos, esperamos que esse período seja o dobro ou o triplo.
É possível que os anticorpos monoclonais levem a uma cura?
Ainda não sabemos isso. Não é provável, mas é possível, pois alguns animais foram efetivamente ‘curados’ no contexto do experimento. O problema é que infecção não dura muito em camundongos, então não sabemos se a infecção acabou se esgotando sozinha ou se aconteceu mesmo uma cura.
Uma das coisas mais importantes no nosso estudo foi mostrar que os anticorpos seriam capazes de fazer aquilo que fizeram. Eles são produtos naturais, que surgem de pessoas, e os organismos de alguns indivíduos “sabem” fazê-los. Talvez seja possível vacinar pacientes de forma a induzi-los a criarem seus próprios anticorpos desse tipo, que não precisariam ser injetados. Seus sistemas imunes seriam “ensinados” a fazer esses anticorpos. Isso significaria então que teríamos uma vacina terapêutica. Basicamente, seria uma cura.
Acho importante pensarmos sobre esse conceito. O objetivo maior deve ser a criação de uma vacina com essas características, mas antes precisamos provar que esses anticorpos realmente previnem e tratam a infecção. Nosso trabalho foi um passo nessa direção.
Os anticorpos que vocês usaram agora são os mesmos descritos em seu estudo na revista “Science” no ano passado?
Um dos anticorpos que usamos agora estava entre aqueles que descrevemos no estudo da “Science”. O outro é um que nós clonamos depois e vamos descrever na “PNAS” [revista da Academia Nacional de Ciências dos EUA] em duas ou três semanas.
Quando vocês esperam começar os ensaios clínicos para testar esses anticorpos numa terapia em humanos?
Não sabemos. Ainda precisamos levantar dinheiro para isso. Não somos uma empresa farmacêutica e não temos fins lucrativos, então precisamos pedir verbas. Fazer um teste como esse custa caro. Mesmo que seja pequeno, provavelmente sai entre US$ 2,5 milhões e US$ 5 milhões. Não estou acostumado a ter de levantar essa quantidade de dinheiro. Sou novo nisso, mas vamos tentar fazer o teste o mais cedo que conseguirmos.
A prova de princípio de que algo assim pode funcionar é uma motivação para seguir em frente com a vacina. Algumas pessoas dizem, há vários anos, que não será possível fazer uma vacina contra o HIV, mas eu acho que será.
O sr. tem a sensação de que a vacina deixou de ser um grande objetivo depois que a epidemia começou a ser controlada com antirretrovirais e políticas de saúde pública?
Anthony Fauci, o chefe do Instituto Nacional para Doenças Alergênicas e Infecciosas dos EUA, sempre falou sobre as drogas não serem uma solução prática para o mundo. E elas não são. Elas são muito caras e não funcionam, porque muitas vezes não estão disponíveis. Alguns pacientes não tomam as drogas, há fatores culturais interferindo e outras coisas.
As vacinas são realmente a solução. Todos concordam com isso. A urgência em desenvolver uma cura mundial ainda é grande. Quando as pessoas tomam seus remédios, elas não estão mais morrendo como acontecia antes, mas globalmente a situação é ruim. Tenho certeza de que isso seria o melhor para o Brasil também.
Como está o progresso da sua pesquisa para tentar desenvolver a vacina com essas características?
Estamos trabalhando muito duro para isso. Eu trabalho com ciência básica, e nunca produzi vacinas ou coisas similares. O que estou tentando fazer é aplicar ferramentas de ciência básica, de genética, em esforços para caminhar na direção de uma vacina.
Os anticorpos monoclonais com os quais o sr. trabalha vão atrair o interesse da indústria farmacêutica?
Em algum momento eles vão. Uma vez que se provar que eles são seguros e práticos, a indústria provavelmente se interessará por eles. Mas o momento não é agora. Ainda estamos trabalhando com camundongos. Para fazer com que valha a pena usá-los, por fim, as empresas farmacêuticas terão de se envolver, senão não chegaremos lá.