Quem vai acabar com o tédio no espaço?
05/05/12 08:30
TENHO INVEJA DA GERAÇÃO que acompanhou a corrida espacial nos jornais e viu o homem chegar à Lua em 1969. Hoje, quem se interessa em seguir o trabalho de astronautas tem um canal de TV só para isso, mas o único programa sobre missões tripuladas é o das missões de vai-e-vem à ISS (Estação Espacial Internacional). Francamente, acho um tédio.
Ônibus espaciais foram concebidos para atuar em órbita baixa, e nos últimos anos sua principal função era completar a montagem da estação. A principal função da ISS, me parece, era receber os astronautas dos ônibus espaciais, o que tornava tudo uma coisa meio sem sentido. A maioria das missões tinha pouco tempo dedicado à ciência de verdade, e nada a ser “explorado”, com exceção dos pequenos quartos da estação.
Agora, com a aposentadoria dos ônibus espacias, fãs da exploração espacial estão acompanhando a estréia da Dragon, espaçonave da empresa SpaceX, que fará sua missão inaugural sem tripulantes no próximo dia 10 (só se o tempo estiver bom; o vôo já foi adiado duas vezes). Transportando um lote de carga para a ISS, a Dragon é a primeira missão “privada” contratada pela Nasa.
De novo, não consigo me empolgar. Não vejo nada relevante a ser feito em exploração espacial até que se comece a pensar de verdade numa missão tripulada para Marte (as missões robóticas são incríveis, mas são outra história). Não me parece que a SpaceX vai conseguir salvar o entusiasmo do público com o espaço, portanto.
Há quem pense diferente de mim, porém, como meu amigo Salvador Nogueira, autor de “Rumo ao Infinito“, jornalista brasileiro que mais domina o assunto. Não costumo publicar entrevista com colegas (acho isso um hábito meio preguiçoso), mas Salvador é um dos casos para os quais vale a pena abrir exceção. Na conversa que tivemos, abri meu coração para que ele me convencesse de que a exploração espacial não virou uma coisa chata. Vejam como foi:
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TEORIA DE TUDO – Convença-me de que a missão da Dragon na ISS não é um avanço meramente incremental para a exploração espacial, uma coisa feita de improviso por causa da aposentadoria precoce dos ônibus espaciais.
SALVADOR NOGUEIRA – Uma coisa que posso citar para mostrar que a SpaceX é mais que incremental é que os chineses ficaram impressionados com os preços [baixos] dos lançamentos praticados pela SpaceX. Lá no Oriente, mesmo com os salários mais baixos pagos aos engenheiros e técnicos, os caras não conseguem bater o preço dos Falcon [foguetes da SpaceX] com os Longa Marcha [foguetes chineses].
Pode parecer pouco, mas veja se a indústria brasileira (ou a americana, para não ficarmos no custo Brasil) costuma bater a chinesa em termos de custo final em qualquer produto. É óbvio que a SpaceX está combinando inovação tecnológica, gestão moderna e pura engenhosidade para levar o custo da exploração espacial a um ponto muito mais baixo do que estava no velho esquemão da Nasa.
TT – A SpaceX vai servir em alguma coisa que não seja fazer naves para abastecer a ISS? Vai ajudar na tecnologia de uma missão tripulada a Marte?
SALVADOR – A SpaceX com certeza quer ajudar a ir pra Marte ou voltar à Lua. Eles têm um plano para uma série de lançadores de grande porte que poderiam impulsionar essas missões. Mas, claro, eles vão depender de governos quererem financiar projetos nesse sentido. No momento, os EUA não parecem muito animados.
TT – Por que estão se refererindo à Dragon como primeira espaçonave privada a ir para ISS? Os outros artefatos que a Nasa manda para o espaço já não são mesmo todos feitos pela por empresas como Lockheed Martin, ATK, etc?
SALVADOR – A diferença está no nível de influência que a Nasa tem sobre os designs e como eles são feitos. No esquema tradicional, a Nasa dita todas as regras do jogo: políticas de design, estratégias de segurança etc. Depois a empresa apresentava a conta e a Nasa pagava. Agora funciona diferente. No caso da ISS, por exemplo, eles estão contratando o serviço de transporte de carga da SpaceX. É problema da SpaceX decidir como eles vão fazer isso, como gerenciam os foguetes, lançam etc.
A Nasa, claro, ainda impõe certas restrições e regras próprias, mas a SpaceX tem muito mais liberdade para planejar a forma de fazer as coisas. Ela pode se arriscar mais, tentar coisas novas, em vez do tried-and-true. A SpaceX tem o interesse em fazer o custo cair, porque pode ganhar mais dinheiro. As empresas terceirizadas tradicionais no esquema antigo da Nasa queriam mais é que o preço subisse, em vez de cair. Então, muda bastante do ponto de vista de modelo de negócios, e isso faz diferença no resultado final.
TT – A SpaceX vai querer entrar na corrida para o mercado de turismo espacial, também, ou você acha que a Virgin Galactic chega lá primeiro?
SALVADOR – Eu acho, sim, que a SpaceX está mirando mais alto. Eles podem até oferecer “pacotes” de programa espacial tripulado para outros países além dos EUA (respeitando, claro, os limites impostos pelas leis americanas no que diz respeito a transferência de tecnologia). Mas eles não querem, num primeiro momento, pegar o público de turismo. Então, se você me pergunta qual empresa privada vai mandar o primeiro turista pro espaço, quase com certeza será a Virgin mesmo.
Contudo, você pode pensar no negócio da seguinte maneira: é como se a SpaceX estivesse começando na faixa mais cara, e a Virgin, na mais barata. Conforme a SpaceX evoluir e os custos caírem mais, ela pode começar a “roçar” no mercado de turismo espacial com mais força. Então, para o médio prazo, eu não descartaria a SpaceX promovendo turismo. Só não é a meta inicial.
TT – O projeto da espaçonave Orion, da Nasa, originalmente criado para substituir os ônibus espaciais em missões tripuladas, ainda está oficialmente de pé, mas avançando devagar. É possível a Nasa entregar a Orion na mão da SpaceX no futuro, quando eles realmente resolverem investir dinheiro em um plano de longo prazo para ir a Marte?
SALVADOR – No esquema em que a Nasa conduz o programa espacial (levando mais em conta o gerenciamento de empregos do que qualquer outra coisa), eu não descartaria que a SpaceX possa pegar a Orion. Mas eles não tem interesse nisso. Eles já têm a Dragon, que é a cápsula deles, feita num modelo de negócio que deixa bem mais barato.
A Orion sempre foi apenas peça de propaganda no contexto de Marte, porque ela é uma cápsula. Uma nave pra Marte teria de ser bem maior. A Orion serviria apenas como veículo para você entrar na espaçonave (do mesmo jeito que seria possível fazer usando a ISS) e depois descer na Terra, no retorno. Seria só uma peça, um elemento entre vários numa espaçonave interplanetária.
Então, a Orion a essa altura tem duas funções: uma é a de back-up, caso a Dragon não funcione (e está cada vez mais claro que não vai dar problema), outra é preservar empregos no programa americano, contra a grita dos congressistas ao cancelamento do Constellation [programa maior no qual a Orion estava inserida]. Do ponto de vista do programa em si, manter a Órion e cancelar os foguetes que iriam levá-la originalmente foi só um jogo de cena. Tiveram de reespecificar toda a nave pra caber num foguete menor.
TT – O Obama não vai dar grana para a Orion e para a Dragon ao mesmo tempo, não?
SALVADOR – A decisão do Obama vai depender do jogo político. O Congresso faz muito lobby porque a indústria espacial americana está espalhada pelo país. Então, um cara puxa o negócio para um lado, outro para o outro, e desse jogo sai o orçamento final da Nasa. Agora, dá pra financiar as duas espaçonaves, se ele justificar uma como suporte à ISS e outra como aquelas lorotas de missão a asteroide (bem mais concreto que Marte) com a Orion.
TT – A esta altura, o comprometimento com a fase final da ISS não está mais atrapalhando do que ajudando a ida a Marte?
SALVADOR – Primeiro, vamos combinar que ninguém fala sério sobre ir pra Marte no momento. Os EUA não estão nem a fim de dividir o custo do jipinho-robô europeu Exomars, que dirá mandar gente pra lá. Então, a ISS é o único caminho viável no momento para o programa. E ela pode contribuir para a ida à Marte se usarem como berço de teste pra viagem.
TT – A Nasa já está mandando o jipão-robô Curiosity em agosto. Não é por isso que não quiseram gastar no Exomars?
SALVADOR – Você tem que lembrar que o Curiosity foi pago ao longo dos últimos dez anos. O planejamento sempre tem que andar uma década na frente. E a verdade é que sem o Exomars (que já foi um improviso, para a Nasa não ter de bancar sozinha uma missão cara dela) não tem muito futuro planejado pra exploração marciana.
TT – Por que a ISS serviria de “berço” para ir a Marte?
SALVADOR – “Berço de teste” é um jargão. Quer dizer que você pode embarcar coisas na ISS pra ver se funcionam bem no espaço. Por exemplo, se você criar um motor iônico pra viagem interplanetária, você poderia instalá-lo na ISS pra ver como opera, ver se funciona de acordo com as especificações. A ISS também poderia ajudar a fazer os ajustes periódicos de órbita ou abrigar uma simulação da viagem a Marte no espaço, como o Mars 500 fez na Terra. Os russos falam em fazer isso na ISS.
TT – Então, você está tentando me convencer de que a ISS serve para alguma coisa?
SALVADOR – A ISS serve para muita coisa. O problema é que ninguém usa. Por quê? Porque as agências espaciais só se preocupam em fazer a manutenção do complexo. Não conseguiram mobilizar o resto da comunidade para usar a ISS como laboratório. Mas, sem dúvida que a ISS é útil. Podem até dizer que a estação espacial é cara demais pela utilidade que ela tem. É uma crítica a se debater. Mas não dá para dizer que ela é inútil.
Por que a Europa compra foguetinhos de sondagem brasileiros para fazer experimentos em microgravidade? Porque é um campo bacana de pesquisa, apenas pouco explorado pelo alto custo. A ISS já está lá para isso. Falta usar.
TT – Será que agora que a estrutura principal está pronta não vai ficar mais fácil fazer alguma coisa bacana lá?
SALVADOR – A expectativa sempre foi essa. A Nasa vai ficar bem mais leve, sem ter de carregar os ônibus espaciais nas costas, e pode empurrar isso.
O problema é que eles estão sob pressão para fechar a lacuna orçamentária. Tem corte de custos para tudo quanto é lado. Mas dá pra começar a pensar nisso aí, até porque foi tudo o que sobrou do programa tripulado.
TT – Os ônibus espaciais sempre atraíram a simpatia do público. Se a SpaceX não conseguir mobilizar esse entusiasmo, será que isso não pode incorrer em um enfraquecimento político da Nasa?
SALVADOR – Sinceramente, a Nasa politicamente já está em frangalhos.
Há a percepção de que ela não consegue realizar nada de grande há muito tempo, custa rios de dinheiro (o contribuinte americano acha que ela custa muito mais do que custa na verdade) e não tem credibilidade quando orça as coisas ou mesmo quando anuncia planos.
O cancelamento do programa Constellation pode muito bem ser (e até agora parece que tem sido) o fim da última barreira para uma redução significativa no orçamento da NASA.
TT – O estouro de orçamento de projetos científicos, como o Telescópio Espacial James Webb, também contribuiu para a fama de eles não saberem fazer orçamentos?
SALVADOR – Sem dúvida que sim. Mas se você for ver, o James Webb reproduziu a história do Curiosity, que reproduziu a história do Telescópio Hubble, que reproduziu a história da ISS, que reproduziu a história dos ônibus espaciais… A Nasa é historicamente conhecida por chutar pra baixo o custo dos projetos. A diferença é que, antes, pelo menos eles concluíam os projetos. Agora, sabe-se lá…
Então, eu diria que a Nasa está na berlinda. A única esperança é mesmo apostar em empresas como a SpaceX, que podem, com seu espírito inovador, descobrir formas *mais baratas* de fazer coisas empolgantes. E, pelo que vi até agora, há razão para otimismo.
TT – Mas eu insisto: não é hora, então, de a Nasa começar a pensar sério na missão tripulada a Marte? Não consigo pensar em nenhuma outra maneira de mobilizar entusiasmo e adotar uma meta clara a seguir.
SALVADOR – Sinceramente, acho que temos esperar o Elon Musk [fundador da SpaceX] propor isso e apresentar um plano bacana. Na semana passada, vimos um punhado de magnatas da internet/computação [a dupla Larry Page e Sergey Brin, do Google, e o Charles Simonyi da Microsoft], o Peter Diamandis [da Fundação Prêmio X] e o Eric Anderson [da Space Adventures] anunciando a criação de uma empresa start-up para promover mineração de asteroides.
Isso é uma coisa empolgante, porque nunca houve missão tripulada a um asteroide. É praticável e não requer nave grande, porque os asteroides passam perto da Terra. Não precisam ter módulo de aterrissagem, porque a gravidade do asteroide é baixíssima. E, por fim, será algo potencialmente lucrativo, se eles conseguirem mesmo trazer as pedras e vender a preços bons.
Se os caras colocarem dinheiro sério nisso, pode ser uma coisa bombástica para a exploração espacial. Entre uma empresa start-up e um negócio consolidado, porém, existe uma grande distância. Vamos ter de aguardar e ver.
TT – Mas, voltando à SpaceX. Saber que ela custou barato não dá um certo medo? Você acha que vai sair tudo bem no primeiro lançamento? Um barateamento excessivo não pode culminar em problemas como os da política faster-better-cheaper, quando a Nasa tentava enviar mais missões usando menos dinheiro?
SALVADOR – Eu sou fã do faster-better-cheaper. Se você for olhar, a Nasa nunca fez tanto com tão pouco no modelo do Dan Goldin [administrador que implantou a estratégia].
TT – Mesmo tento perdido duas sondas em Marte?
SALVADOR – OK. Vira-e-mexe eles perdiam algo. Mas continuamos perdendo coisas hoje. Faz parte do jogo. O faster-better-cheaper colocou o jipe Sojourner e a sonda Mars Global Surveyor em Marte por uma fração do que custavam missões desse tipo.
TT – Então é bom a SpaceX seguir o mesmo modelo de barateamento?
SALVADOR – Barato, para carga, é bom.
TT – Se falhar, não morre gente.
SALVADOR: Exato. Mas a missão da segunda-feira é um pouco mais tensa porque envolve atracação com a ISS. Então, suponha que a cápsula fique louca e trombe com a estação. OK, problemão. Mas por “barato” quero dizer “mais barato do que o proibitivamente caro da Nasa”.
TT – Mas, passada a fase do transporte de carga, quando a SpaceX realmente entrar no negocio de missões tripuladas, não vai ser complicado voar astronautas “estatais” em foguetes “privados”?
Salvador: Quando um cientista estatal precisa voar num avião privado para fazer um post-doc, isso é complicado? O problema é a mentalidade. Não temos o costume de pensar que o trabalho do astronauta é na ISS, na Lua, em Marte, nos asteroides… Não é na cápsula que o leva para lá. Isso é só o meio de transporte.
TT – Acho que me acostumei a ver a Nasa sempre tentando passar a imagem que tudo o que ela faz é fruto de uma política de estado, de um grande esforço do povo americano.
SALVADOR – Pois é. E isso, na verdade, trava as coisas, porque um grande esforço do povo americano não pode matar gente toda hora. Acho que o fato de isso estar indo pra iniciativa privada uma coisa muito boa. Na verdade, é a última esperança, porque o clima político não sustenta mais corrida espacial. A direita americana até tenta criar um clima igual, fazendo antagonismo com a China, mas não cola.
TT – Para terminar: qual é a atual resposta para a pergunta “quando iremos a Marte”?
SALVADOR – Sendo bem honesto, a não ser que alguém descubra warp drive [o telestransporte transporte ultra-rápido de “Jornada nas Estrelas”], considero impossível alguém ir antes de 2050.