O gráfico do "taco de hóquei", que ilustra o aquecimento global pela variação de temperaturas nos últimos 150 anos
EM CERTO DIA no início da década passada, a editoria de ciência da Folha recebeu a curiosa carta de um leitor que tinha elaborado uma teoria própria. O autor da missiva defendia a ideia de que a Terra não se movimenta em torno do Sol e que este não está no centro da órbita dos planetas. A carta perguntava se a reportagem do jornal tinha interesse em cobrir essa nova “descoberta”: nosso planeta é que está no centro do universo.
Negar o modelo heliocêntrico nos dias de hoje é uma atitude “corajosa”, para usar um eufemismo, e é fácil entender por que o remetente da carta imaginou que o jornal iria se interessar. Caso sua teoria estivesse certa, toda a ciência astronômica produzida desde Nicolau Copérnico, no século 16, cairia por terra. É difícil imaginar uma notícia sobre ciência mais retumbante do que essa.
A probabilidade infinitesimal de que a hipótese de nosso leitor estivesse correta, porém, não foi o bastante para nos motivar. Ignoramos o convite e demos prosseguimento à nossa cobertura habitual de astronomia. Estou seguro de que eu e meus colegas não nos arrependemos, ainda que haja uma mísera chance de o maior furo de reportagem do milênio ter passado por nossas mãos.
Recentemente, jornalistas de todo o país têm tido que enfrentar uma outra tentação: o assédio dos chamados “céticos do clima”, intelectuais que negam as teorias vigentes sobre o aquecimento global. Caso suas hipóteses estejam corretas, cairá por terra o conhecimento construído após quase um século de pesquisa climática, que culminou na conclusão de que o planeta está aquecendo em função da emissão de gases do efeito estufa por atividades humanas.
Diferentemente de nosso leitor geocentrista, porém, os céticos do clima vêm tendo bastante sucesso em convencer jornais, revistas e programas de rádio e TV no Brasil a divulgar suas ideias. Talvez seja uma comparação injusta, pois há diferenças entre as duas teorias. É mais fácil acolher um discurso que questiona uma ciência geralmente restrita a especialistas, como a da mudança climática, do que endossar uma carta contrariando fundamentos de astronomia que uma criança no 4º ano do ensino fundamental é capaz de entender.
O fracasso dos céticos do clima em publicar estudos revisados em periódicos científicos, porém, é inegável. Existe uma razão para isso: a negação do aquecimento simplesmente não se sustenta diante das observações, e os pareceristas das revistas barram estudos nos quais as contas não fecham. O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática), por outro lado, reuniu centenas de estudos publicado mostrando como a alta concentração de CO2 no ar faz com que atmosfera se aqueça. Além de se basear numa teoria coerente e apoiada por observações, o último relatório do IPCC exibe uma certeza estatística de 90% ao afirmar que a humanidade está causando o aquecimento global. Isso significa que céticos do clima apostam suas fichas em uma faixa de 10% de incerteza, munidos de teorias carentes de evidência e que muitas vezes nem sequer fazem sentido.
Verdade seja dita, esse cenário não garante que o IPCC esteja correto. Todos gostariam que as conclusões dos climatólogos tivessem 100% de garantia, em vez de 90%. Acontece que uma certa dose de incerteza é inerente a toda a ciência. A diferença entre teorias boas e ruins é que as últimas não sobrevivem ao espírito questionador da comunidade científica. Teses alternativas sobre o aquecimento global não emplacam em revistas científicas porque a concentração de CO2 no ar é alta, o mundo está esquentando, as observações confirmam isso e as teorias que mostram a relação de causalidade entre um fato e outro estão comprovadas.
Agora, a despeito da abundância de evidências, é justo dizer que alguns ambientalistas fazem campanha contra os combustíveis fósseis sem realmente entender o que é o efeito estufa. Por outro lado, sabemos que muitos céticos do clima são meros porta-vozes da indústria do petróleo, interessada em deter o movimento ambientalista. Quero crer que nem toda a discussão é enviesada, porém. É aceitável que alguns neguem o aquecimento por convicções acadêmicas sinceras. Me parece ser o caso do mais ilustrado dos céticos do clima brasileiros, Luiz Carlos Molion, professor da Universidade Federal de Alagoas, entrevistado pela Folha nesta semana.
Alguns anos atrás, tive a oportunidade de assistir a uma palestra de Molion, que aceitou um convite para a ir até o auditório do jornal explicar sua posição. Físico e meteorologista, ele reconhece que o planeta esteja se aquecendo, mas não por causa do efeito estufa. As culpadas seriam a oscilação no nível de radiação solar e a atividade vulcânica terrestre. O professor foi gentil e atencioso com sua audiência, mas o debate ao fim da apresentação acabou ficando um pouco tenso quando alguns jornalistas presentes o questionaram. Eu estava entre aqueles que não se convenceram.
Ao rejeitar o assédio dos céticos do clima, posso estar abrindo mão de notícias com títulos sedutores, mas estou seguro de que faço a coisa certa. Preciso de mais do que de uma carta bem escrita para que minha confiança no modelo heliocêntrico seja abalada. E preciso de mais do que uma seita minoritária de intelectuais com estudos rejeitados pela comunidade científica para que eu duvide do aquecimento global.
Às vezes abrimos espaço para os céticos do clima no jornal, pois alguns deles exercem tanta influência que não podem ser ignorados. Fora isso, leitores têm direito de pedir que os jornais se posicionem sobre determinados assuntos, mesmo quando cientistas já atingiram consenso. Nós, jornalistas, afinal, temos de cobrir debates que se desdobram na sociedade civil como um todo, não apenas nos círculos acadêmicos. É o que aconteceu durante as denúncias de céticos contra práticas do IPCC em 2009, apelidadas de “climagate“. Noticiamos tudo e, após uma investigação, nenhuma fraude foi constatada, apesar do tratamento que alguns cientistas dão aos céticos terem sido reprovados.
Nos últimos anos, porém, à exceção deste post de blog, desisti de me dedicar pessoalmente ao tema. Pelo que observei, negacionistas do aquecimento global parecem estar mais interessados em fazer barulho do que em provar alguma coisa. Se quisessem provar que estão certos, não deveriam procurar jornalistas. Deveriam bater na porta dos editores de periódicos científicos indexados, o fórum onde o consenso acadêmico se manifesta no mundo moderno.
Não vou detalhar aqui razões científicas sobre por que eu acredito que as teorias sancionadas pelo IPCC estão corretas. Este post é mais sobre jornalistas do que sobre climatólogos e seus rivais, afinal. Sites de cientistas como o Real Climate e iniciativas de professores como o Centro Nacional para Educação em Ciência têm material suficiente para abastecer qualquer repórter que tiver paciência de entrar numa discussão com céticos do clima. Essas discussões não costumam ter fim, alerto, pois muitos argumentos contra o aquecimento usam incertezas pontuais e lógicas circulares imunes a questionamentos externos. É a mesma estratégia dos criacionistas para sabotar o ensino da teoria da evolução.
O cenário retratado em grande parte da mídia como uma “polêmica” entre climatólogos e céticos do clima, portanto, é uma caricatura da realidade. O peso dos argumentos em prol do IPCC é tão acachapante que chega a ser desonesto dar aos negacionistas o mesmo peso de importância numa reportagem. Quando escrevo sobre o Sistema Solar, igualmente, não considero necessário destacar que há uma minoria de pensadores que ainda preferem o modelo geocêntrico. Abrir espaço arbitrariamente para qualquer tipo de negação não deixa uma reportagem mais “equilibrada”.
É verdade que houve um momento em que os astrônomos tiveram de discutir de igual para igual com os intelectuais ligados à Igreja Católica. Isso foi cinco séculos atrás, quando a Santa Sé ainda tentava salvar o modelo geocêntrico da investida de Galileu Galilei. Hoje ninguém mais tem paciência para reacender a discussão cada vez que uma alma isolada questiona a centralidade do Sol entre os planetas.
O modelo teórico que explica o efeito estufa e o aquecimento global, é bom lembrar, também está entre nós há bastante tempo. Alguns de seus componentes já completaram mais de um século resistindo a questionamentos, e os céticos do clima já perderam o debate dentro do IPCC, o fórum criado para essa discussão. Como jornalista, continuo aberto a argumentos dos negacionistas, mas hoje é bem difícil eu me convencer a divulgar uma de suas pesquisas. Dizer, da boca para fora, que há um complô internacional de cientistas contra a verdade e chamar os ambientalistas de terroristas é algo que simplesmente não cola mais. O astrônomo Carl Sagan, sabiamente, costumava dizer que “alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias”. Essa é a base do verdadeiro ceticismo.