Um vírus letal num continente negligenciado
11/08/14 16:50QUANDO OS AGENTES de saúde americanos Nancy Writebol e Kent Brantly contraíram o vírus ebola em Serra Leoa e foram levados às pressas de volta aos EUA para serem tratados, muita gente imaginava que eles seriam recebidos como heróis –ou como mártires. Para ajudar um povo carente de tudo a combater um dos patógenos mais agressivos do planeta, os dois haviam arriscado suas próprias vidas.
A reação de boa parte público porém, acabou sendo simplesmente o pânico, personificado na frase do magnata Donald Trump, para quem os dois cidadãos americanos infectados deveriam ser impedidos de voltar ao país e mereciam “sofrer as consequências”.
Mas Writebol e Brantly foram, enfim, recebidos num centro de alta proteção para tratamento de doenças contagiosas em Atlanta, onde receberam uma terapia experimental, o ZMapp. O medicamento provavelmente foi aquilo que salvou suas vidas. E a disseminação do ebola –um vírus que só se transmite por fluidos corporais– num lugar como os EUA, ainda é algo de risco baixo, como avaliam os próprios NIH (Institutos Nacionais de Saúde).
(Para aqueles que buscam razão para entrar em pânico no Brasil, também, basta lembrar que os Médicos Sem Fronteiras também têm brasileiros nas equipes de campo na África ocidental agora.)
Às vésperas de fazer mil mortos, porém, e com a OMS (Organização Mundial da Saúde) conclamando um alerta global, o maior risco que o ebola oferece agora é o de ampliar aquilo que já é uma tragédia humanitária de saúde na África subsaariana. Mais uma, como se não bastassem Aids, malária, tuberculose e qualquer doença que prospera em terras sem acesso à saúde básica.
ISOLAMENTO
Enquanto muita gente no mundo desenvolvido acha que o ebola tornou a África Ocidental um câncer que deve ser isolado do resto do planeta, pouca gente se dá conta de que, na verdade, aqueles países já estão economicamente isolados há muito tempo. E isso é algo que está colaborando para a doença se disseminar, e não para detê-la.
Uma das coisas mais importantes a se fazer agora é rastrear o caminho feito pelo vírus para identificar quem entrou em contato com cada um dos doentes. Isso tem esbarrado, por exemplo, em barreiras sociais, como a desconfiança que povoados em Serra Leoa, Guiné e Libéria têm em relação a missionários estrangeiros.
Lá, comunidades que normalmente não têm nenhum tipo de assistência a saúde, começaram de repente a receber equipes de médicos estrangeiros. Só que ali, onde o pânico realmente se justifica, ninguém quer falar com ninguém. Grupos locais desconfiam desse súbito interesse dos países ricos com a saúde dos africanos, talvez com algum fundo de razão. Às vezes, em vez de ajudar os médicos, eles barram sua passagem.
Teria a história sido diferente se essas pessoas tivessem acesso regular a cuidados básicos de saúde? Sem saber se os estrangeiros chegaram a esses vilarejos antes ou depois dos vírus, não me parece tão incrível que pessoas sem acesso a informação desconfiem que são os médicos que espalham o ebola. Na África ocidental, um lugar mais densamente povoado e com mais infraestrutura do que a área de epidemias passadas, os boatos correm rápido. E eles sempre correm mais rápido que as informações corretas.
NEGLIGÊNCIA
O ebola raramente é citado nas listas de “doenças negligenciadas”, mas é isso que ele é. Ele causa uma febre hemorrágica aguda, com surtos esporádicos, que afeta apenas uma região extremamente pobre do globo. Não importa que o vírus seja letal. Qual laboratório farmacêutico teria interesse em desenvolver uma droga para tratar uma doença nessas condições, sem nenhuma perspectiva de grande lucro?
O Zmapp parece ser realmente uma boa notícia (a ver; dois casos positivos não são ainda suficientes para provar a eficácia da droga). Mas até a semana retrasada, esse tratamento ainda era uma iniciativa modesta tocada por uma start-up obscura. Ele e outras drogas experimentais vêm se mostrando promissores desde 2009, então por que não havia ainda planos sérios para um teste clínico?
Com relação aos reservatórios da doença, desde 2005 já existem evidências fortes de que são os morcegos. Por que as pesquisas são tão poucas? Por que não existe ainda um sistema de vigilância para esses animais, como aqueles que monitoram a gripe aviária em pássaros migratórios?
A resposta para isso tudo é quase evidente: porque o lar do ebola é a África, e o palco da catástrofe é distante de nações desenvolvidas, ainda que a OMS tenha subido o tom de alerta. Na África, as mortes por malária superam os 520 mil: mais de uma criança morre a cada minuto em razão da doença. A prevalência do HIV em muitos países ali supera os 10% da população, e muitos soropositivos têm tuberculose, com uma taxa anual de 250 novas infecções por 100 mil/ano.
Donald Trump não precisa se preocupar: essa tragédia humanitária não vai ser exportada para os EUA. Nem o ebola. A catástrofe que estamos vendo, ao que parece, continuará sendo uma catástrofe do continente africano, e seu espalhamento epidêmico tem muito a ver com as condições de vida ali.
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JAD//RTH
Uma reflexão certeira.
Este Donald Trump é um tremendo egoísta. Não é surpresa isto vir da boca de sujeito destes.
Acredito que escrever sobre a epidemia do ebola deve ser um “must” ou algo muito “ in fashion” para os jornalistas, mas gostaria de ver jornalismo sem ranço preconceituoso como falar de um grande ignorante como Donald Trump, rei do mercado imobiliário americano. Se desejar falar sobre o subdesenvolvimento, culturas tribais, guerrilhas e outras maldições que assolam o continente africano você poderia começar dissertando sobre como as nações europeias assaltaram todas as regiões, roubaram todas as riquezas e incutiram nas cabeças dos espertalhões a cobiça mesmo que à custa de milhares ou milhões de mortos. Escreva sobre monstros como Idi Amim Dada, ou o genocídio de Ruanda entre hutus e tutsis, a apartheid imposta pelos brancos aos negros e amarelos na África do Sul etc. A população dos países africanos recebeu a herança maldita dos brancos quando as riquezas se exauriram sem que os mesmos loiros de olhos azuis deixassem sequer um nanômetro de cultura para o bem estar dos explorados.
Que na média, todo brasileiro morra de inveja dos americanos eu até entendo, mas eles têm um CDC em Atlanta que atua em qualquer local do mundo com surtos epidêmicos e principalmente se, desconhecidos. Você dirá que é para a proteção do território americano no que eu concordo plenamente, mas para evitar que chegue a terras do Tio Sam é preciso conter sua disseminação. Imagine que junto com os turistas que vieram para a Copa alguns já estivessem contaminados; será que o governo brasileiro teria qualquer condição para o combate se, nem sequer conseguimos manter a dengue sob controle?
Escrever sobre o assunto atual deve ser estimulante, mas porque será que não vemos jornalistas escrevendo sobre as taperas que são chamadas de escolas que sequer possuem vasos sanitários, água tratada, esgoto etc., hospitais, estupros, assassinatos? Ah escrever sobre brasileiros não dá audiência e nem confere charme?!!!
Tetsuo, a herança que o imperialismo branco-europeu deixou na África só torna um dever moral maior, não menor, que os EUA e países desenvolvidos auxiliem a África de qualquer maneira que seja. Nós escrevemos bastante aqui na Folha, eu escrevo também, sobre dengue e outros males que assolam o Brasil. É só você acompanhar o jornal ou dar uma busca no nosso site que você vai encontrar bastante coisa. Escrever sobre o ebola agora, para os jornalistas, não se trata de moda. Trata-se de reunir um pouco de informação para saciar uma curiosidade que é a demanda dos próprios leitores. Olhar para fora do país e enxergar o que está acontecendo lá fora não é algo que antrapalhe olharmos para dentro. É algo que ajuda. Ou você acha que o certo seria o jornal ignorar uma epidemia de ebola que já matou mais de mil pessoas?
Rafel Garcia, eu não quero polemizar sobre o tema, mas não vejo muitas matérias sobre dengue e outras endemias recebendo o mesmo tratamento cedido ao ebola. Eu não acho certo os jornais ignorarem a doença que já matou mais de mil pessoas ou beligerâncias na Europa (Ucrânia) ou Oriente Médio, mas vocês profissionais “fazedores de opiniões” não poderiam ser muito mais incisivos nas causas brasileiras que matam centenas de milhares de pessoas por ano? Veja como morrer ou matar no Brasil já não é mais “manchetes”, será que a morte foi tão banalizada que apenas olhamos para alguns poucos milhares de mortos em outras paragens do mundo? Será que vítimas no exterior tornam-se mais dignos de nota que os nossos mortos? Entendo que você ou seus colegas da imprensa não irão mudar de opinião apenas pelo que escrevo, mas não seria hora de começarmos a combater a violência, descasos e corrupções que matam muito mais que ebola e guerras; bastaria você fazer um levantamento para um ano. Opinião de um homem de 66 anos que já teve um irmão assassinado e um sobrinho baleado em tentativa de assalto.
Concordo com vc Sr Tetsuo, também penso da mesma forma, claro que o intuito do Sr Rafel, foi dar informação e importante sobre o assunto, mas também compartilho do seu pensamento. Realmente é duro você tentar entender o ser humano, acho o papel da imprensa importantíssimo para dar informação a sociedade, mas o que dizer de um povo, que está vendo a falta d’água em seu estado, que sabe que sem água a vida simplesmente acaba, pois é essencial pra tudo, principalmente na saúde e elege o mesmo governante no primeiro turno, sabendo que nada fez pra que isso melhore, e ainda diz que não vai haver racionamento de água… sendo que em muitos locais do estado já está em falta, fica realmente dificil culpar somente a imprensa pela não divulgação dessa ou aquela materia… Enquanto ficarmos defendendo esse ou aquele partido por interesses pessoais, seremos sempre um povo de terceiro mundo.
Rafael sua reportagem foi muito boa, e tem muita relevância escrever sobre o tema ebola.
Concordo contigo, enquanto a epidemia mata “esse povo” que não oferece nenhuma perspectiva de “lucro” aos laboratórios ricos, do primeiro mundo, tudo bem, para eles.
A opinião de miseráveis como Donald Trump não choca, já que para eles esta parte do continente é insignificante.
Mas a “dor de barriga” pode atravessar fronteiras, e do jeito que o carro anda, com certeza vai atingir muitos paises omissos com tanto sofrimento de uma nação.