Sobre o Robocop do Itaquerão
28/02/14 13:13Acaba de entrar em cartaz nos cinemas o novo “RoboCop“, filme do diretor José Padilha. É o remake de um clássico da década de 1980 que povoa o imaginário de toda a pessoa que foi criança na época. (Quem nasceu só depois disso se lembra ao menos de uma pérola do cancionário popular brasileiro na qual os Mamonas Assassinas fazem referência à obra.)
Não quero estragar a surpresa para ninguém que deseje ver a nova versão (spoiler alert: o mocinho vence no final), mas acho que o roteiro do filme, mesmo meio sendo uma ideia meio manjada, merece uma reflexão. “RoboCop” reestreia num momento em que a ciência retomou o debate do qual o filme trata: pode o pensamento criado no cérebro humano ser realmente convertido em sinais computacionais?
No filme, essa questão se abre em discussões sobre livre arbítrio e consciência humana: o protagonista luta para não deixar sua mente ser dominada pelo computador. Na vida real, a ciência está longe de criar um dilema dessa magnitude. Mas é exatamente essa questão, em uma versão menos drástica, que tem motivando críticas à mais avançada iniciativa de ICM (interface cérebro-máquina) que existe na vida real.
No início do mês, publicamos uma reportagem sobre o projeto “Andar de Novo”, do neurocientista Miguel Nicolelis, que promete fazer uma demonstração espetacular no jogo de abertura da Copa, no estádio Itaquerão. O pontapé inicial da partida será dado, promete o cientista, por um jovem portador de lesão de medula espinhal que terá movimentos restaurados por uma armadura robótica conectada a seu cérebro.
Diferentemente do corpo de RoboCop, a prótese cibernética de Nicolelis não deverá controlar o estado de consciência de quem vesti-la. Sua única finalidade é captar impulsos elétricos do córtex motor, área do cérebro responsável por controlar movimentos, e enviá-los à armadura robótica. Isso seria o suficiente para fazer com que a prótese se mova da mesma forma que nossos músculos, reagindo a impulsos nervosos.
Mesmo realizando a simples tarefa de caminhar, porém, não está claro quanto dos movimentos da armadura robótica serão efetivamente controlados pelo cérebro dos voluntários e quanto estará “pré-programado” na eletrônica da prótese. Em outras palavras: nessa demonstração, é o homem que controlará a máquina, ou a máquina que controlará o homem?
Uma coisa é certa: a interface cérebro-máquina do projeto “Andar de Novo” não tem meios de simular *todos* impulsos nervosos que comandam a perna de uma pessoa. Em qualquer prótese que se imagine, é preciso que um reducionismo seja feito. Isso não é necessariamente um problema, mas qual é o limite para esse reducionismo?
BITS POR SEGUNDO
Para responder a essa questão, vale a pena pensar em termos de informática. Suponhamos que a interface de Nicolelis seja capaz de extrair apenas 0,1 bps (0,1 bit por segundo)*. Isso seria o suficiente, por exemplo, para acionar um sistema que execute os movimentos de caminhada automaticamente, fazendo o indivíduo que a comanda andar alguns metros, e então parar, dez segundos depois, após emitir outro comando. Se for esse o caso, será que nos atreveríamos a dizer que um cientista “devolveu os movimentos” a um paraplégico?
Sem dúvida isso seria a prova de princípio de que é possível criar aplicações interessantes para uma interface cérebro-máquina, mas ainda está muito longe de permitir a criação de uma armadura robótica que substitua uma cadeira de rodas de maneira robusta.
O problema com a taxa de bits por segundo de informação é o calcanhar de aquiles das pesquisas em interfaces cérebro-máquina. Ed Tehovnik, o cientista que agora acusa Nicolelis de fazer uma demonstração “prematura” na copa, é o principal de uma abordagem de fluxo de bits para discutir o assunto. Ele fez um levantamento da literatura científica na área e constatou que as melhores interfaces cérebro-máquina atingem uma velocidade de apenas 0,1 bps, o mesmo valor do exemplo acima. Estudos anteriores constataram que uma velocidade razoável para a realizaçção de movimentos bem simples, como mover um objeto de um lugar a outro da mesa, seria dez vezes maior.
Nicolelis acusa Tehovnik de promover um ataque pessoal, e evita falar de pormenores de seu trabalho. Não é impossível que o pesquisador americano tenha mesmo antipatia pelo brasileiro, seu ex-colaborador. Tehovnik, hoje trabalha na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, num grupo que reúne os remanescentes de uma cisão sofrida pelo IINN (Instituto Internacional de Neurociência de Natal), lar do projeto “Andar de Novo”. (Já escrevi em outra ocasião um resumo das escaramuças em que Nicolelis se envolveu.)
A crítica de Tehovnik –um pesquisador remanescente do prestigiado MIT, que tem em seu currículo um bocado de estudos publicados sobre fluxo de informação– não se limita ao trabalho de Nicolelis. É dirigida a todo o campo de interfaces cérebro-máquina. E Tehovnik não é o único a expor uma visão mais cética sobre essa linha de pesquisa.
MODELO SIMPLISTA
Na semana passada conversei também com Mike Graziano, da Universidade de Princeton (EUA), que tem apontado alguns problemas no campo de pesquisa.
“Os modelos [de informação cerebral] que as pessoas estão usando são muito simplistas, mas têm conseguido produzir algum movimento”, diz o pesquisador. “Essa coordenação limitada sem dúvida é útil para pessoas que praticamente não podem se mover, mas não é algo que as aproxime de uma funcionalidade normal.”
A essência do problema, diz Graziano, é que os cientistas que tiveram algum sucesso em interfaces cérebro-máquina até aqui adotaram uma abordagem pragmática, que abriu mão da teoria sobre o que são as informações lidas pelo cérebro.
“Quando voce tira sinais diretamente do córtex motor e tenta controlar um robô, você está contornando uma grande parte do sistema nervoso, e isso é um problema”, explica o pesquisador. Um bocado da coordenação de movimento é feita, por exemplo, pela medula espinhal, o que significa que a informação do córtex motor não é completa. “Ninguém sabe exatamente o que são esses sinais no córtex motor e o que eles significam.”
Um dos problemas, afirma Tehovnik, é que descobertas recentes mostram que neurocientistas tem usado como sinais neuronais de comando os impulsos elétricos que são gerados no cérebro pelo feedback de braços e pernas em movimento, e não os sinais enviados a esses membros. Se isso for constatado, os comandos de exoequeletos atuais só funcionariam em pacientes que ainda têm algum movimento residual, e não naqueles com uma perda de função mais severa.
PRONTO PARA A COPA?
O grande desafio para Nicolelis, porém, talvez seja o prazo que ele tenha imposto a si próprio para apresentar uma prótese robótica funcional. O cientista ainda não demonstrou nem sequer uma prótese robusta aplicada a um de seus macacos. Não é meio cedo para que uma prótese em humanos esteja para operar em junho?
Nicolelis insiste em dizer que seu projeto está com a agenda em dia para a grande demonstração na abertura da Copa do Mundo, mas tem trabalhado de uma maneira estranhamente sigilosa para um pesquisador que recebeu US$ 15 milhões de investimento público brasileiro em seu projeto.
No mês passado, quando Nicolelis veio a São Paulo e deu uma palestra em um colégio, jornalistas foram impedidos de entrar no evento. Seus assessores afirmaram que a apresentação tinha informações que ainda deviam ser divulgadas amplamente. Quais serão esses segredos de Polichinelo que precisam ser escondidos dos jornalistas, mas podem ser divulgados a uma plateia de ensino médio. O pesquisador já tem mostrado diversas imagens do projeto em sua página no Facebook.
Graziano, de Princeton, diz acreditar “no objetivo e na direção” adotados por Nicolelis, apesar de constatar que o progresso tem sido “mais lento do que se esperava”. O exagero no peso de promessa dado à pesquisa já tem irritado algumas pessoas na comunidade de cadeirantes, como meu colega Jairo Marques.
Já Tehovnik é bem incisivo em suas críticas, acusando toda a comunidade de pesquisa em próteses robóticas de de excesso de propaganda misturado à falta de transparência.
“Existe um bocado de corrida por dinheiro nesses programas, mas ninguém quer falar sobre quem são os pacientes”, diz. “Acho que o dinheiro corrompeu um pouco o campo de pesquisa, que deixou de ser ciência e se tornou mais um negócio de vender um conceito e uma ideia.”
Se a crítica for válida, talvez seja justo reconhecer que a indústria do cinema já superou a ciência nesse quesito. O “Robocop” de Padilha custou US$ 100 milhões, mas já levantou US$ 145 milhões só com a bilheteria do primeiro mês.
* Não tente comparar as interfaces cérebro-máquina com a velocidade da internet em banda larga. Extrair informação digital do sistema nervoso ainda é um processo muito, muito mais lento.
Por que será que tudo o que é relacionado a próxima Copa do Mundo de Futebol sempre vem com cheiro de picaretagem? Cientistas sérios fariam todas as análises possíveis antes de colocar uma engenhoca destas para funcionar e neste caso isto vai demorar muito, pois o conhecimento de como o cérebro transmite ordens ao corpo e de como se pode captar estas ordens ainda é incipiente. Nicolelis vai bancar o picareta bem na frente da maior plateia possível pois muita gente vai ver o seu feito pela TV. Isto se não der tudo errado.
Usar a abertura da Copa do Mundo como propaganda é uma ideia genial. Afinal, a briga por verba existe, e quem é mais conhecido tem mais chances de obter verbas maiores para experimentos que não são exatamente baratos, certo? A questão que se coloca é o quanto é leal (ético?) mostrar uma coisa ao público leigo sem explicar exatamente qual a extensão daquilo, mesmo que seja como recurso publicitário visando um bem maior, o avanço da pesquisa. É claro que aí entram também a briga por prestígio, os egos inflamados, as brigas… tudo tendo a ciência como pano de fundo. Daqui a alguns anos essa história deve dar um belo livro, se alguém resolver pegar o touro pelo chifre.
O perigo de um fracasso relativo com relação ao prazo proposto para a demonstração é desacreditar uma linha de pesquisa promissora. É possível que o cérebro do paciente aprenda a lidar com o tempo de feed back dos estímulos gerados por ele, tal como rapidamente redefine o equilíbrio, a postura e aspectos da motricidade quando temos um membro machucado, por exemplo. Então, ainda que as críticas sejam procedentes, espero que a pesquisa prossiga.