Como (não) repartir seu cérebro
25/11/13 18:00QUEM NUNCA ouviu falar da tese sobre a divisão do cérebro em dois hemisférios, cada um com um jeito de pensar. O cérebro direito (criativo e intuitivo) e o cérebro esquerdo (racional e metódico) estariam competindo pela dominância, e cada um de nós penderia para um dos lados. Proliferam pela internet os testes de procedência incerta que prometem mostrar ao leitor qual dos hemisférios cerebrais ganhou o cabo-de-guerra na luta pela consciência.
A segunda coisa mais incrível sobre os estudos de “lateralização” do cérebro –a diferença de função entre os hemisférios esquerdo e direito– é a velocidade com que ficaram conhecidos do público geral. Já a primeira coisa mais incrível é a maneira com que esse conhecimento acabou se disseminando de forma totalmente deturpada na cultura.
A lateralidade do cérebro existe de fato. Certas funções específicas –como algumas do mecanismo da linguagem, por exemplo– funcionam apenas no lado esquerdo do córtex cerebral. E regiões homólogas no cérebro direito organizam ruídos não linguísticos. Mas o fato de existirem algumas diferenças pontuais como essas não significa que haja uma divisão simplória ou uma dicotomia entre raciocínio e intuição.
Apesar de a maioria dos psicólogos concordar com isso hoje, essa noção equivocada de como o cérebro funciona se popularizou bastante na última década. Saber se você pensa mais com seu cérebro direito ou cérebro esquerdo acabou se tornando quase um tipo de astrologia. Você é de touro ou escorpião? Racional ou intuitivo? A noção popular da lateralidade acabou, por fim, caindo no mesmo saco da Frenologia, pseudociência do século 19 que buscava explicar traços de personalidade com base em protuberâncias no crânio.
A forma com que isso saltou de estudos da neurociência real –sobretudo os do cientista Roger Sperry (Nobel de Medicina de 1981)– para a cultura popular é um dos assuntos do livro “Top Brain, Bottom Brain”, do neurocientista Stephen Kosslyn, tema de reportagem que publicamos hoje. O autor faz um bom trabalho em explicar por que a visão simplista racionalismo X intuição está errada.
O autor, porém, conta a história a título de apresentar uma nova teoria, uma segundo a qual diferenças de personalidade podem ser explicadas por outro tipo de divisão –entre áreas de cima e áreas de baixo. A teoria de Kosslyn, endossada por nomes importantes da comunidade neurocientífica nos EUA, está bem fundamentada em evidência experimental (diferentemente do mito da divisão hemisférica), mas ainda carece de provas, que podem vir com o tempo.
O autor do livro divide as diferentes maneiras de pensar em quatro tipos, e cada pessoa teria tendência a operar predominantemente de uma determinada maneira. É uma teoria cheia de sutilezas, que não abre muito espaço para simplificações grosseiras, mas tem uma chance boa de cair no gosto popular dada a atenção que tem recebido da mídia nos EUA. Além disso, calro, existe a classificação tipo “horóscopo” a que ela se presta.
Kosslyn já colocou à disposição na internet até mesmo uma versão de seu teste dos modos cognitivos, que qualquer um pode acessar e fazer. Justiça seja feita, é um teste psicológico validado em trabalhos de pesquisa sérios, e não um questionário inventado para alguma revista feminina. Mas, nas mãos de leigos, ele não estaria sujeito a se tornar ferramenta para banalizar as teorias mais sérias? Afinal de contas, tudo indica que as descobertas de Sperry estavam corretas, e a dicotomia racionalidade/intuição que caiu no gosto público é apenas uma caricatura grosseira daquilo que a neurociência de fato mostra.
Numa conversa que tive com Kosslyn por telefone na semana passada, ele me disse estar confiante de que sua teoria não será vítima do mesmo problema dos estudos sobre lateralidade do cérebro. “O problema dessa hipótese é que ela parte de uma caracterização errada do cérebro, trata os dois hemisférios cerebrais como se fossem compartimentos isolados e pressupõe que um hemisfério precisa dominar o outro”, diz. “Nossa teoria agora não possui nenhum desses problemas.”
Em “Top Brain, Bottom Brain”, Kosslyn tem a decência de apresentar sua teoria ao público como uma hipótese que ainda carece de provas em alguns aspectos, apesar de já ter suporte em muitas evidências. Se, no futuro, os “modos cognitivos” predominantes não se mostrarem uma maneira útil de classificar as pessoas, é possível que a ideia já venha a ter se disseminado o suficiente para ter vida própria na cultura popular, independentemente do veredicto da ciência.
Acho que esta parte do texto poderia se evitada…”Justiça seja feita, é um teste psicológico validado em trabalhos de pesquisa sérios, e não um questionário inventado para alguma revista feminina”
Flávia, reconheço que posso estar sendo injusto com algumas revistas femininas que fazem um trabalho bem feito em reportagens sobre psicologia e comportamento. Creio que haja poucas, porém.
Pouquíssimas.
Eis que emerge uma vontade de fazer uma analogia com o que ocorre na astronomia – a despeito dos conhecimentos obtidos pela física/astrofísica, persistem ainda ideias completamente irracionais no povo em geral – o que chamamos de senso comum. Da mesma forma, então, continuarão “crenças” e ideias ultrapassadas no assunto deste artigo. Não posso deixar de constatar ainda, que é de minha área – a Psicologia, os conceitos “non sense” que as pessoas tem desta Ciência.