Aids: o contraexemplo da Rússia
01/08/12 08:30NA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DA AIDS, que terminou na semana passada aqui em Washington, uma das coisas que mais saltou aos olhos para mim foi tamanho do desafio que os problemas de estigma, preconceito e discriminação representam diante do desafio de se acabar com a epidemia.
Como jornalista de ciência, passei quase toda a minha carreira achando que o grande entrave para o combate à epidemia do HIV seria a falta de ferramentas clínicas como a vacina ou algum tipo de medicamento que efetivamente trouxesse a cura. A cura não veio, nossa melhor vacina ainda têm eficácia muito baixa (30%) e essas continuam sendo promessas sem data para serem cumpridas.
Escrevi no post anterior, porém, sobre como o avanço da terapia antirretroviral e o surgimento de novas ferramentas de prevenção podem um dia levar a incidência da Aids a zero. Como tinha deixado de fora os problemas sociais que estão entranhados à epidemia, deixei para a reportagem de hoje algumas palavras sobre o assunto.
Uma das melhores maneiras de ver como estigma, preconceito e discriminação afetam o problema é olhar para o caso da Rússia.
Enquanto o Brasil avançava na implementação do acesso à terapia antirretroviral e da disseminação das campanhas de prevenção, o governo russo decidiu tomar mais ou menos o caminho inverso.
Em vez de alertar a população para o avanço do problema, o primeiro-ministro Vladimir Putin preferiu abafar o avanço da epidemia de HIV para não perder votos.
Em vez de dar atenção a grupos marginalizados como os gays, que sofrem um bocado com homofobia no país, o governo preferiu apoiar medidas que só contribuem para isolar ainda mais esses grupos. (Uma das medidas mais infames foi a lei que o governador de São Petersburgo aprovou proibindo a “propaganda homossexual”, algo que deve dificultar as campanhas de educação e prevenção voltadas ao público gay.)
Para piorar as coisas, levar as campanhas de prevenção até prostitutas é um desafio, pois a venda de sexo é ilegal na Rússia, e campanhas estatais de atendimento a prostitutas não existem. ONGs que quiserem se aventurar a tentar distribuir camisinhas tem de atuar sozinhas.
A medida que mais prejudica as políticas públicas de combate ao HIV, porém, é a perseguição aos usuários de drogas injetáveis. Na maioria dos países ocidentais onde a heroína é comum, campanhas nas quais agulhas limpas são distribuídas a viciados ajudaram a controla o problema do HIV. É uma política de redução de danos cuja eficácia foi comprovada, mas que o governo linha dura do país se recusa a adotar.
Putin não apenas se recusa a dar verbas para programas de redução de danos como também está perseguindo agora as ONGs que estão tentando fazer isso por conta própria. Voluntários da Fundação Andrey Rylkov, que cuida de viciados em drogas injetáveis, foram ao encontro de Washington reclamar que o governo russo está tentando fechar seu website e também processando a entidade, acusando-a de vender drogas.
O problema é mais grave ainda quando se leva em conta que os grupos marginalizados estão entremeados. O Fundo de Populações da ONU estimou em uma pesquisa de dois anos atrás que um terço das prostitutas utiliza drogas injetáveis também.
E para piorar a situação da epidemia de HIV, a Rússia e os países da ex-URSS tem uma cobertura de tratamento antirretroviral muito ruim, com apenas 23% da demanda atendida. O número é pior que os índices da América Latina (70%) e até da África Subsaariana (56%).
Em virtude de toda essa situação, não foi uma surpresa para todos que a epidemia de HIV na Rússia, menor que a brasileira nos anos 1990, explodiu. A Rússia e outros países da ex-URSS têm hoje 120 mil novas infecções por ano e mais de 1 milhão de pessoas já estão vivendo com HIV na região.
A comparação da Rússia com o Brasil, porém, não significa que as autoridades brasileiras já fizeram tudo o que podiam fazer para deter a epidemia. Há inclusive uma percepção por parte de algumas ONGs de que o programa brasileiro contra o HIV está sofrendo um retrocesso.
A diferença que o sucesso da política brasileira contra a Aids tem para o russo, porém, ainda serve para ilustrar como o respeito aos direitos humanos é uma ajuda tremendamente positiva sobre a saúde pública. O Brasil ainda não é nenhum paraíso livre de homofobia, de agressões contra trabalhadoras do sexo e do estigma do HIV, mas já está claro que, se combatermos mais esses problemas, todos só tem a ganhar.
Apesar de muitos problemas do Brasil, não tem como não admirar sua tolerância cultural/social. Uma pena que a Rússia ainda tenha a mente tão fechada, inclusive para os próprios problemas, prejudicando a si mesmo. Entretanto, não é só ela que discrimina tanto os homossexuais, prostitutas e incentivo à preservativos; infelizmente muitas religiões (inclusive aqui) também o abominam e fazem seus fiéis acreditarem nisso também.
Realmente, a mentalidade humana é um caso difícil de discutir, apenas torço para que um dia ocorra uma mudança significativa por lá que beneficie a todos.
Gostaria que o senhor comentasse o caso de Uganda. Com certeza é mais esclarecedor que o da Russia e do Brasil.
Caro André,
A comparação entre Rússia e Brasil é interessante porque são países que têm economias de tamanho semelhante (ambos são BRICS), tinham mais ou menos os mesmos recursos à disposição, mas tiveram trajetórias radicalmente diferentes em suas epidemias.
Uganda ainda é um país que depende muito de ajuda externa para combater à Aids e onde a epidemia já tinha crescido a níveis assustadores antes do advento dos antirretrovirais. Mas, claro, é um caso que tem muito a ensinar. Não pesquisei muito sobre o país, mas vou contar um pouco das coisas que escutei sobre Uganda no encontro aqui em Washington.
Uganda conseguiu derrubar um pouco a incidência do HIV na década de 1990 e começo dos 2000, mas que a questão de direitos humanos de gays e trabalhadoras do sexo está ficando cada vez mais complicada lá. Na semana passada, conversei um pouco com Paul Semugoma, um médico que trabalha em Kampala. Uganda está passando por uma onda conservadora agora, e várias leis homofóbicas estão em trâmite. Ele acha que as leis mais duras contra gays, porém, não devem passar, em razão de pressão política externa e interna. Mas isso não quer dizer que vai ser fácil trabalhar lá. Semugoma escreveu um artigo alguns meses atrás sobre isso no Huffington Post. Segundo ele, o programa anti-Aids do país está falhando agora por causa da recusa em dar apoio a homens gays. Ele põe parte da culpa em missionários evangélicos americanos que fizeram um tour pelo país para alertar os ugandenses para a “ameaça gay”. E ele diz também que o PEPFAR, o programa americano de ajuda externa contra o HIV, é conivente com a discriminação. O artigo dele (em inglês) é bem interessante:
http://www.huffingtonpost.com/dr-paul-semugoma/puritanism-is-deadly-poli_b_440858.html
Ok,
É que eu pensei que o blog fosse sobre ciência, mas estou vendo que vc dispensa muitas linhas para homofobia/conservadorismo.
Eu gostaria de ver um gráfico semelhante confrontando Brasil e Uganda. Mas já que é pra comparar países semelhantes, seria bom fazer um gráfico confrontando Uganda com outro país africano, como a África do Sul…
Oi, André,
Deixa eu explicar, então. O blog é sobre ciência, sim. E a epidemiologia é uma ciência muito interessante, porque é uma ciência interdisciplinar. Isso significa que, para entender como as doenças infecciosas se disseminam, não basta estudar a biologia molecular dos vírus e bactérias. É preciso entender a estrutura da sociedade para tentar prever como a epidemia vai se comportar, e então tentar evitá-la.
O relatório do Unaids deste ano dedicou um capítulo inteiro sobre as transformações sociais que são necessárias para combater o vírus, e os cientistas mais importantes presentes aqui na Conferência Internacional da Aids foram unânimes em dizer que os antirretrovirais não vão acabar com a Aids sozinhos. As camisinhas também não. É preciso um esforço social tremendo para que essas ferramentas de tratamento e prevenção cheguem até onde elas precisam.
O infectologista Luiz Loures, chefe do escritório executivo da Unaids, diz que o preconceito, a discriminação e o estigma estão se tornando problemas cada vez mais perniciosos na tentativa de combater a Aids. E esses problemas foram também um ponto central no discurso de François Barré-Sinoussi, descobridora do HIV e ganhadora do Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia. O problema da discriminação de gays, trabalhadoras do sexo e usuários de drogas é um ponto central do discurso dela.
A transcrição do discurso está disponível aqui: http://www.aids2012.org/WebContent/File/Speeches/AIDS2012_Francoise_Barre-Sinoussi_Closing_Speech%20.pdf
O problema da Rússia foi justamente o de achar que as questões sociais não têm nada a ver com epidemiologia, como você está sugerindo em seu comentário. Eu me restringi aqui a escrever sobre o caso da Rússia. Você pode escrever aqui no blog algum comentário sobre a Uganda, se você quiser. Eu relatei para você a história que eu ouvi diretamente de um médico que trabalha em Kampala e foi escolhido para falar em uma das plenárias principais aqui no congresso. Suspeito que o que ele tinha a dizer não era a resposta que você queria ouvir.
Se você acha que a pregação da abstinência, a criminalização da homossexualidade, a marginalização das trabalhadoras do sexo e a perseguição a viciados são boas políticas contra o HIV, desafio você a procurar evidência científica para isso. O Medline está aí para isso. Mas te garanto que o que você vai ver é exatamente o contrário.
Sr. Rafael,
Nos meus dois comentários nada há que permita concluir que eu queira ouvir algo.
Sou leigo. Tenho poucas informações. Venho atrás delas. Suas palavras sobre conservadorismo não foram muito informativas. No mesmo momento vi um “concorrente” seu, o blog de ciência do Estadão. Lá não há considerações que não seja científica (isso fica para os comentários). Bom, quanto a isso vc explicou razoavelmente.
Tenho poucas fontes sobre o caso de Uganda. O seu colega Reinaldo Azevedo, da Veja, publicou coisas interessantíssimas. Que o nº de novas contaminações caiu 1/3 porque lá as campanhas públicas lembraram a dimensão moral do sexo. Talvez vc chame isso de pregação da abstinência. De qualquer modo, já que o nome do blog é “Teoria de tudo”, espero que vc se esforce para buscar informações precisas. No mínimo vc vai informar melhor seus leitores, e quem sabe contestar um dos blogueiros mais famosos do país.
Na minha opinião de leigo (parece que vc quer conhecê-la), sei que a camisinha é um método de prevenção, que deve ser adotado quando a pessoa negar consciente e definitivamente os benefícios da abstinência e de uma vida moralmente responsável, depois de devidamente alertada. Eu me pergunto sobre as probabilidades de um sujeito totalmente entorpecido por drogas, bebidas, etc. vai lembrar de botar a dita na hora agá.
Ah sim, também gostaria de saber o que aconteceu na Rússia naquele pico do começo dos anos 2000. O que fez aumentar e o que fez diminuir??
Caro André,
A história da campanha de Uganda foi por muito tempo alardeada pelo governo Bush como um caso de sucesso, mas os medicos já sabem que não foi bem assim. Ele fazia isso porque o Pepfar dava dinheiro para programas de abstinencia na época dele.
Esse dinheiro, porém, foi recurso jogado fora, pois o programa teve uma taxa de adesao pífia.
Dê uma busca por literatura médica. Veja, por exemplo, esse esse artigo de comentário no BMJ, que é uma dos periódicos médicos mais repeitados do mundo. É bem didático.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC552834/
Veja o que o Lancet, outra revista médica indexada e com alto impacto, publicou sobre as políticas de abstinência:
http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S147330990570219X
Isso nem é mais notícia nova. A queda da incidência de HIV em Uganda pode ser explicada por outras coisas, dentre as quais o aumento do acesso à terapia ARV (eles têm cobertura melhor que a da Rússia) e, veja só, distribuição de agulhas para viciados:
http://www.ijsa.rsmjournals.com/content/15/7/440.short
Tudo o que eu escrevi aqui recentemente sobre Aids foi tirado de literatura médica e daquilo que os maiores especialistas em HIV disseram na semana passada em Washington. Sempre cito as minhas fontes.
Lamento não ter tido tempo de ler as coisas interessantíssimas que o Reynaldo Azevedo escreveu. Talvez você queira perguntar a ele quais são os estudos de epidemiologia onde ele leu que a pregação da abstinência é uma política de saúde eficaz.
Por fim, não me entenda mal. Toda igreja tem o direito de pregar a abstinência sexual internamente seus fiéis quando achar adequado. Isso é uma questão de liberdade religiosa, concordo. Agora, isso NÃO é substituto para uma política de saúde pública de verdade. Seu comentário sugere que uma pessoa que faz sexo antes do casamento é “moralmente irresponsável”. Não acho que esse tipo de declaração seja um bom uso da liberdade de religião.
Bom, a cada comentário vc trouxe mais informação. Gostaria um pouco mais, como um gráfico de Uganda.
Mas eu dei uma lida nos meus comentários e não vi nada religioso… será que um ateu não poderia defender “sexo moralmente responsável”??
O sexo moralmente irresponsável, creio, é filho da vida moralmente irresponsável. Pois continuo com minha curiosidade: Como um sujeito totalmente entorpecido com drogas e bebidas vei ter a lembrança de colocar a camisinha?
Terminando minha participação: Eu vim aqui atrás de informação! O que vc prestou razoavelmente…
O que é sexo moralmente responsável? Quem define isso? O que há de científico nesse termo obscuro?