Como respirar arsênico (por pouco tempo)
09/07/12 13:23“O PROCESSO CIENTÍFICO É naturalmente auto-corretivo, com cientistas tentando reproduzir resultados já publicados.”
Foi com o uso do corolário acima, conhecido por todo cientista, que a revista “Science” reconheceu ontem que um das descobertas recentes mais intrigantes da biologia estava errada.
Em dezembro de 2010, Felisa Wolfe-Simon, do Instituto de Astrobiologia da Nasa, tinha apresentado ao público uma bactéria que não usava o elemento fósforo em seu metabolismo, pois o tinha substituido por arsênio, o componente central do veneno arsênico. A mera troca de um elemento pode soar irrelevante para leigos em bioquímica, mas se a cientista estivesse correta, a GFAJ-1, o micróbio encontrado no lago Mono, na Califórnia, seria único.
Até hoje, todos os organismos vivos conhecidos dependem crucialmente de seis elementos em seu metabolismo: oxigênio, carbono, hidrogênio, nitrogênio, enxofre e fósforo. Se este último pudesse ser trocado por arsênio, a compreensão de cientistas sobre as condições básicas para o surgimento da vida deveriam ser repensadas. Apelidada até de “bactéria extraterrestre”, a GFAJ-1 seria um sinal de que a vida poderia emergir em locais jamais imaginados.
A consagração, porém, durou muito pouco. O trabalho de Wolfe-Simon começou a ser atacado logo após a publicação, e outros biólogos a criticaram por ter sido apressada em tirar algumas conclusões. Rosie Redfield, da Universidade da Columbia Britânica, tentou reproduzir o experimento original feito pela cientista da Nasa, e obteve resultados diferentes. Esse e outros argumentos, porém, foram insuficientes para convencer a Nasa a retratar o estudo.
A edição desta semana da “Science”, porém, traz enfim não apenas um, mas dois estudos explicando o que estava errado no trabalho de Wolfe-Simon.
Um deles, liderado por Tobias Erb do ETH (Instituto Federal de Tecnologia da Suíça), em Zurique, mostra que apesar de a bactéria ser capaz de viver num meio altamente contaminado por arsênio, seu organismo precisa de um pouco de fósforo para sobreviver. A cientista da Nasa, portanto, havia concluído que o micróbio metabolizava arsênio sem ter a certeza de que não havia fósforo em suas amostras.
O outro estudo, liderado por Marshall Reaves, da Universidade de Princeton, contraria afirmações de Wolfe-Simon de que moléculas essenciais ao funcionamento dos organismos —como DNA e os lípídios das membranas celulares— poderiam trocar o fósforo por arsênio.
A vida, portanto, volta ao normal a partir de hoje.
A “Science” cumpriu seu papel ao buscar os melhores argumentos contra um estudo controverso e fez o certo em se esforçar para publicar os trabalhos que contrariam uma descoberta que ela própria tinha alardeado. Num caso desses, é a reputação da publicação que está em jogo, e os editores da revista se sairam da melhor forma possível.
Para Wolfe-Simon e para o Instituto de Astrobiologia da Nasa, porém, o futuro não será tão fácil. O erro talvez não seja feio o suficiente para que a cientista seja crucificada eticamente, mas, ao que tudo indica, errar foi um pecado menos grave do que insistir no erro. Pareceristas que lerem seus estudos futuros certamente terão cuidado redobrado antes de endossar suas conclusões.
A “Science”, para qualquer efeito, tentou resgatar aquilo de bom que sobrou do estudo original da pesquisadora, no comunicado que publicou domingo. Tecnicamente o estudo não foi retratado, e a revista reconhece o mérito de Wolfe-Simon de ter atentado para a importância da GFAJ-1, “um organismo de resistência extraordinária que deve ser de interesse em mais estudos, particularmente relacionados a mecanismos de tolerância ao arsênico”.
Não é a primeira vez e nem será a última que um estudo ou publicação científica produz equívocos em suas conclusões. Esses erros se dão ou por má-fé como no caso do cientista coreano que divulgou uma publicação sobre clonagem humana ou por precipitação na divulgação dos dados com no caso dos neutrinos que parecia violar velocidade da luz como limite máximo de deslocamento. Esses erros colocam a ciência em descredito principalmente pelos seus detratores, e aqueles que julgam a ciência como infalível ,sem perceberem que a ciência como qualquer tipo de conhecimento está sujeito as idiossincrasias próprias da natureza humana, passíveis de todos os tipos de falhas e enganos.
Gerson,
Acho um pouco de exagero comparar a Felisa Wolfe-Simon com o Hwang Woo-suk. A Felisa, até onde se sabe, não fraudou amostras e não tentou enganar deliberadamente os editores da revista. Ela cometeu erros de interpretação, mas os dados delas estavam lá, tanto que as pessoas que tentaram reproduzir o experimento tiveram acesso a tudo o que precisavam. O Hwang fraudou amostras deliberadamente, tentou sustentar a mentira contando mais mentiras e cometeu uma outra série de desvios éticos. Por isso, acho que crucificar a Felisa talvez não seja a coisa certa a fazer nesse caso. Ela já vai sofrer um bocado na mão dos pareceristas a partir de agora.
Bom dia,
o interessante da Ciencia e justamente criar hipoteses e tentar comprova-las ou nao. O erro faz parte do processo cientifico. A partir do momento em que voce comprova o erro (veja bem, comprova!!!) novas questoes sao levantadas e estudadas. O erro nao leva ao descredito da Ciencia, mas a ajuda a avancar. Questoes eticas e de ma-fe nao sao erros cientificos.
Oi Leandro, concordo plenamente! Enquanto não haja má fé, não tem porque olhar com tão maus olhos assim para erros de interpretação. Sempre crescemos com eles!
Na verdade esse caso AUMENTA credibilidade e confiança na ciência pois demonstra cabalmente que o método científico – com todos os seus protocolos de controle e Peer review – estão funcionando perfeitamente.
Muito bacana seu post Rafael. É sempre bom nos mantermos atualizados dos acertos e “erros” científicos.
Grande abraço.
Oi Rafael, apesar de não entender nada de bioquímica (sou física) adorei a postagem. Sem dúvida a maior prejudicada nessa história toda será a pesquisadora. No entanto às vezes me pergunto o quão justo é o “crucificamento” de cientistas que cometem erros. Acredito que se não há manipulação de dados/resultados, deveríamos encarar a pesquisa como um processo passível de erros e interpretações incorretas.
Abraços!
Pois é, é exagero a comparação dos estudos. Não houve má fé, houve erro experimental ou até condições experimentais inapropriadas. Na ciência isso acontece o tempo todo, e a gente só fica aliviado quando alguém reproduz os nossos dados. Se a cientista documentou seus achados, prova que não teve má fé, não há motivo para a crucificação. É sempre importante que todo o grupo tenha acesso aos dados brutos, e na verdade, seria bom se no futuro os dados brutos fossem submetidos junto com a publicação.