Guerra na psiquiatria - o teste do manual
09/05/12 20:23ESTÁ TERMINANDO HOJE o encontro anual da Associação Psiquiátrica Americana, na Filadélfia, que abrigou diversos simpósios sobre as mudanças no Manual de Estatísticas e Diagnósticos da entidade, o DSM, a principal obra de referência do mundo na área. A reformulação do livro tem sido uma guerra desde que teve seu processo iniciado em 2000, e o congresso na Filadélfia parece estar acabando com mais dúvidas e menos certezas.
O DSM está saindo da quarta para a quinta edição e a força-tarefa responsável pelo processo passou a receber uma enxurrada de críticas desde que a nova versão começou a ser delineada. A maior parte delas diz respeito a mudanças que fariam pessoas hoje consideradas saudáveis passarem a ser classificadas como portadoras de transtornos mentais.
A crítica mais comum é aquela relacionada à definição da depressão. Sob o DSM-4, pessoas em período de luto raramente são diagnosticadas com esse problema, pois a tristeza e outros sintomas desse transtorno são considerados normais para quem perde uma pessoa próxima. A força-tarefa do DSM-5, porém, propôs que esse critério de exclusão fosse eliminado, sob a justificativa de que algumas pessoas entram num círculo vicioso de depressão que se inicia no luto.
É uma proposta debatível, mas críticos temem que a iniciativa para tal tenha saído de relações de conflito de interesses que membros da APA mantém com a indústria farmacêutica.
Pelo que se falou na Filadélfia, a força-tarefa do manual continua recomendando a eliminação do critério de exclusão para luto, mas refraseou sua posição, reconhecendo que “a reação normal a um evento envolvendo uma perda” pode “se assemelhar a um episódio de depressão”. Segundo reportagem do New York Times sobre o congresso, o DSM-5 provavelmente vai voltar atrás em duas outras propostas, também.
Uma delas era a criação de um “transtorno misto de ansiedade com depressão”. Os critérios para diagnosticar esse novo tipo de problema mental, porém, falharam em mostrar consistência nos testes de campo com psiquiatras e o manual não deverá inclui-lo. Críticos temiam que pessoas com neuroses moderadas passassem a ser rotuladas com uma doença psiquiátrica caso o transtorno fosse criado.
A outra baixa na batalha da Filadélfia foi o que a força-tarefa batizara de “transtorno de psicose atenuada”, basicamente um diagnóstico de esquizofrenia para jovens que sofrem apenas alucinações esporádicas ou sintomas isolados. Os testes de campo falharam novamente em validar critérios razoavelmente objetivos para tal.
Tentativa e erro são um procedimento normal em medicina, claro, mas no caso do manual da psiquiatria estão sendo motivo para desespero, pois os testes de campo começaram tarde demais. A APA ainda mantém na agenda que vai bater o martelo sobre a versão definitiva do DSM-5 em maio de 2013.
Ferris Jabr, psicólogo que escreve para a revista “Scientific American”, está acompanhando os resultados dos testes de campo e faz uma interessante analogia. “Imagine um confeiteiro que passa vários meses criando mentalmente um novo bolo de chocolate, mas testa a receita apenas um dia antes de ter de entregá-lo, descobrindo que na verdade o sabor é péssimo”, diz. “A APA se colocou em uma posição semelhante.”
Apesar dos retrocessos em dois pontos, porém, a força-tarefa do DSM considera que a maioria das mudanças propostas da quarta para a quinta edição passaram pelos testes de campo. Entre aquelas onde a discussão está estagnada, contudo, estão algumas que geraram grande polêmica, como o autismo.
Conversei alguns meses atrás com Allen Frances, psiquiatra que coordenou a edição do DSM-4 e tem sido um duro crítico do esboço do DSM-5. Em seu blog, hoje, ele diz crer que os resultados de alguns outros testes de campo apresentados na Filadélfia também foram insatisfatórios.
Já se esperava que o processo de revisão do DSM fosse esbarrar em problemas epistemológicos e filosóficos, pois é difícil encontrar critérios objetivos para definir transtornos mentais cujos mecanismos biológicos ainda desafiam a ciência. Pessoalmente, acredito que o manual da psiquiatria seja uma ferramenta importante, mesmo com todas suas imperfeições. Os atrasos com os testes de campo, porém, podem fazer com que discussões sobre o DSM-5 nem sequer avancem até chegar à epistemologia.
PS. Não entrei muito aqui na discussão sobre o uso de critérios neurobiológicos para definir transtornos mentais no DSM. Pretendo escrever sobre isso em outro post num futuro breve.
Isso é o retrato da pós modernidade,talvez o único tempo humano na qual o sujeito tem quase obrigação de ser feliz,ignorando que tristeza faz parte da natureza humana,daí surgirem absurdos como :eu tenho direito de ser feliz,o que importa é a felicidade,etc… Paradoxalmente essa ditadura da felicidade só gera mais… infelicidade
André, é a primeira vez que leio “Ditadura da felicidade”, entretanto, logo de cara fez um sentido lógico muito coerente!
Thanks.
Estamos diante de um processo iniciado no século passado chamado de medicalização da saúde em que a categorização dos estados físicos e mentais antes considerados “normais” são classificados como patológicos. Como definir um quadro de tristeza e depressão de maneira inequívoca? O objeto é o mesmo? Estamos falando sobre as mesmas coisas ou são coisas diferentes? O discurso é o mesmo? Veja o caso da TDH. O aluno hiperativo sofre de algum distúrbio psiquiátrico ou seu comportamento é em função de fatores sociais e educacionais e portanto pode ser considerado normal? Claro que categorizar e incluir comportamentos considerados como normais tem visivelmente interesses econômicos relacionados à indústria farmacêutica, a indústria de exames e consultas médicas. Qualquer consulta médica envolve procedimentos que resultam necessariamente a prescrição de medicamentos e um pré diagnóstico representados pelos exames de laboratório e diagnósticos por imagem que exigem equipamentos de alta tecnologia. Estamos caminhando cada vez mais para uma sociedade em que estaremos mais e mais reféns da categorização das ciências médicas onde a vida se trona artificial, onde a “doença” será a regra e aquilo que nós considerávamos como normalidade e naturalidade dos nossos estados biopsicossociais serão excessão.
Gerson, legitimando o que você diz, taí a “AMIL” e suas co-irmãs que não deixam você mentir, certo?
Infelizmente, cada vez mais observamos a influência da indústria farmacêutica nos debates científicos acerca das definições do que deve ser considerado um transtorno mental. Percebe-se que progressivamente características e reações humanas sofrem um processo de “patologização”, de modo que temos cada vez menos condições para fazermos reflexões sobre nossos problemas ou sofrermos com nossas perdas. Em uma sociedade que supervaloriza a capacidade produtiva do ser humano, sempre haverá um “remedinho” para atenuar nossos sintomas e seguirmos em frente, custe o que custar. Já tinha achado revoltante a transformação da timidez (traço temperamental) em fobia social (transtorno mental), agora é a vez do luto se tornar depressão. Certamente deve haver a intenção de uma ampliação do chamado “espectro autista”, de modo que mais crianças serão estigmatizadas por serem um pouco diferentes do “padrão” (não quero dizer com isso que o verdadeiro autismo não seja um fenômeno grave e que não mereça grande investimento em pesquisas para se entender melhor sua origem e aprimorar os processos de intervenção). Há também um sério problema epistemológico por trás desse tipo de manual que se propõe a ser “ateórico”, mas que se alinha claramente aos avanços da neurociência: o reducionismo da busca de explicações para o comportamento humano a partir do funcionamento do cérebro. O cérebro é o órgão mais importante para se compreender o ser humano (especialmente do ponto de vista da evolução das espécies), porém, o cérebro não nos “faz fazer” nada. O cérebro faz parte do organismo e, portanto, deve ser compreendido como parte de um todo que está em constante transformação ao interagir com o ambiente externo. Algumas supostas causas neurofisiológicas diversos comportamentos humanos (incluindo transtornos mentais) podem também ser entendidas como consequências da interação com o ambiente, depende apenas do ponto inicial que tomamos como referência. Enfim, todo esse processo de medicalização do comportamento humano esquece de um ponto básico: o remédio pode atenuar o sintoma, mas não resolve o conflito que muitas vezes se encontra encoberto.
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Sou paciente do CAPS Butantã,as informaçãoes sobre a TDAH abriu meu entendimento e achei muito eficaz a nota que se da droga metilferinato (ritalina), vou indica-la no meu tratamento.OBS.Esses comentários feitos sobre a indústria farmacêutica se tornaram perseguidores a melhor forma de se encontrar uma solução é trabalhar dentro de um único objetivo não gerando mais conflitos.